O Corredor
Foi a canção que o despertou. Ainda naquele
estado de sonolência, as mãos procuraram o pequeno celular embaixo do
travesseiro. Abriu os olhos, e no painel azulado, viu que ainda faltavam quinze
minutos para às quatro horas. Mais uma vez despertaria e seguiria viagem,
deixando aquele hotel, mas ah, ah como odiava acordar antes do despertador,
roubado em quinze minutos do seu sono. Virou a cabeça para o lado, olhos
fechados, empurrando os lençóis para longe, tentou não pensar no dia que logo
se iniciaria. Tentou não sentir a boca ácida, guardando resquícios de whisky ,
enjoado com o cheiro da maquiagem e do perfume oriental de alguma prostituta
que lhe fizera companhia parte da noite. Vencendo a náusea, cobriu a cabeça
para fugir da luz vinda da janela. A canção havia desaparecido, mas a melodia
ainda ecoava.
Havia sonhado, a imagem clara sua mente,
asas de borboletas, lábios que balbuciavam palavras que não podia entender. E
na modorra entre o sono e a realidade, sabia que voltaria a sonhar com a menina, segurando algo não identificado e
murmurando.
A cabeça moveu-se no travesseiro úmido, os
sentidos entorpecidos, adormeceu. Viu-se em um corredor escuro, cercado por
quartos em ruínas, e ao seu lado, as paredes grafitadas. Seus passos
arrastavam-se no chão escorregadio, enquanto uma água fétida surgia fininha na
parede ao lado. As cores embaçadas da madrugada envolviam a tudo, e cada
penugem do seu corpo arrepiou-se, quando a canção cresceu, e ouviu seu nome em
sussurros, entrecortando a melodia.
Pressentiu nas sombras um vulto passando, virou-se devagar,
indeciso entre correr e o medo que o paralisava, mas não havia nada, nada além
uma porta entreaberta, de onde vinha um soluço, um pequeno lamento. Paulo
empurrou a porta, devagar, e de repente, todos os seus membros amorteceram-se:
era ela!
Estava encostada na parede, em um canto
imundo, cercada por teias de aranhas, quando ele a viu. Bianca, os cabelos dourados em duas tranças e
a fita solta pelos ombros. A velha angústia o envolveu, o ar faltou quando a
dor tornou-se física. Sem perceber, uma lágrima começou a cair dos seus olhos. Balbuciou
o nome que há muito não ousava pronunciar e os olhos amendoados ergueram-se,
fitando-o sem parecer reconhecê-lo, mas os lábios cheios e rosados abriram-se,
implorando:
— Socorro,
por favor...
Paulo via os
lábios moverem-se em um pedido mudo, ouvido dentro de si quando ela apontou com
os braços finos o outro canto da sala. Ali, bem a frente de Bianca, da sua
Bianca, um gigantesco escorpião branco retorcia-se. Feroz, a pele estranhamente
branca, o animal possuía no ferrão uma ponta vermelha, que agitava ameaçador. O
ferrão ia e vinha em direção a moça, cada vez mais perto. Paulo olhou ao redor,
e em suas mãos, viu de repente um facão, e avançou aço contra carne, e quanto
mais fortes eram os golpes, mais o peçonhento se debatia, os olhos arregalados
e azuis explodindo em sangue. As sombras cresciam por todo lado, e gemidos
finos subiam pelo ar, até que a carcaça albina jazia derrotada.
Levantou os olhos, mas ela já não estava, apenas a ponta do vestido branco
arrastando-se pela porta, e desesperado, ele a seguiu pelo corredor enlodado. E
enfim, quando os corredores bifurcaram-se, ele a viu, esperando-lhe. Ela a sua
frente, as tranças douradas, a fita azul, e a renda suave enfeitando a borda do
vestido, como da primeira vez que a vira. Os mesmos olhos amendoados fitando-o,
em expectativa. Ela agora em seus braços, a boca na sua, a pele, o cheiro que nunca
o havia abandonado, os braços o envolveram e Paulo tremia enquanto seu
corpo a prendia na parede, explodindo de ternura e paixão, tocando-a por
cima do algodão, sentindo o coração batendo sob o seu peito, ele chorou. No
ar, as notas espalhavam-se: — And every new dawn... ends in bitterness ...
O ventilador movia-se lentamente no
quarto, e as hélices foram parando, parando, até que o silêncio sufocou as
horas e Paulo acordou. Os olhos estavam úmidos, e os soluços irromperam no
peito do homem. Abraçou o próprio corpo, sentindo o cheiro da pele amada,
depois de tanto tempo, porque sua mente a trouxera de volta? A velha dor...
amarga dor. O calor crescia, e novamente procurou o pequeno celular, os números
diziam claramente: 3horas e 45 minutos. Um pesadelo, um maldito sonho. A cabeça
repousou no travesseiro, aquela noite havia sido longa, sentia sede, os lábios
ressecados. E ela. Ela impregnando-se em sua alma. Fechou lentamente os olhos,
mais quinze minutos, e na esperança de tê-la um pouco mais, forçou o corpo a
descansar novamente. Foi se deixando embalar pelo sono, e o sonho voltou.
Estava de volta ao corredor escuro. Na parede, recortes de jornais manchados de
sangue, letras turvas no papel embolorado impediam-no de ler.
Os sussurros agora chamavam seu nome, e as
mãos tocavam o corredor escuro enquanto ele corria. Ouvia os passos leves e
revia o campo onde ele e Bianca haviam corrido pela primeira vez, sonhado
tantos sonhos, dançando na varanda, as faces tocando-se, ah, era a mesma
melodia.
Uma porta abriu-se ao seu lado, e o mesmo
lamento de antes veio de uma sala em ruínas. A menina com asas de borboleta
apareceu, estendendo-lhe os braços, oferecendo-lhe algo que não podia
identificar, as palavras mudas murmuradas nos lábios, mas quando um ruído feroz
quebrou a mesa de vidro, ela se afastou, entristecida. Um riso áspero cortou a
sala, e no outro canto, Bianca chamava por ele, implorando por socorro. O
escorpião branco erguia-se, mas seus pés estavam presos no lodo imundo da sala.
A agulha rubra tocou a face pálida, e Bianca gemeu quando o ferrão vermelho
perfurou-lhe o peito, a ponta fina dilacerando a renda branca, rasgando a carne
e o tecido até um rio rubro escorrer pelo chão, o ventre dilacerado e, horror dos
horrores, um bebe chorava entre as vísceras. Paulo gritou, gritou, gritou, até acordar com o
próprio grito, as imagens congelando-o na cama, o ódio tomando-lhe o
peito, viu-se preso na velha angústia, revendo o casamento, a família, o bolo, a
valsa, as imagens dançavam em sua mente, e ele não parava de gritar.



.png.png)
0 comentários:
Postar um comentário